Essa certamente é
uma daquelas leituras que faço questão de voltar todos os anos, porque sei que
sofrerei um impacto diferente a cada leitura. Minha primeira experiência com
Maya Angelou foi em Mamãe&eu&mamãe, e percebi que de algum modo a
autora trabalhava questões conflitantes de maneira tão intima, nada romântica
mas ainda assim verdadeira. Maya ficou conhecida pela sua poesia, mas suas
obras autobiográficas certamente são a minha força motora.
Em Eu sei por que o pássaro canta na Gaiola vamos conhecer uma Maya diferente, falando sobre uma de suas primeiras experiências traumatizantes na escola, e logo em seguida discorrendo a respeito da sua infância, se ver como uma criança negra é traumatizante tal qual ser uma criança negra em um período de segregação. Marguerite Ann Johnson foi criada pela avô, tanto ela quanto o irmão cresceram sem a figura dos pais por motivos que vamos entender mais tarde, em seus próximos livros, essa criação deu a ela uma imagem irreal de que seus pais haviam falecidos, afinal nunca apareceram, então um dia um homem de fala rebuscada aparece e avisa que irá levar Maya e o irmão para uma viagem, era seu pai, levando-os para conhecer enfim sua mãe, essa situação em especial dá para Maya uma perspectiva assustadora, sair de sua casa, que sempre foi seu lar para enfim conhecer alguém que nunca fez parte da sua vida, novas experiências, novos traumas, uma infância interrompida pelo medo e por abusos.
Assim
que encontra sua mãe, Maya sente uma espécie de deslocamento, a figura materna
foge do comum e é difícil nutrir aquele tipo de amor que se espera, seu irmão
sente o contrário, e muitas vezes Maya se pega pensando a respeito disso,
acontece que desde sempre a menina aprendeu a ser silenciosa quando deve,
obedecer sempre os adultos e nunca questionar, tudo vai bem até a figura do
padrasto aparecer, a relação do homem com a garota vai bem até os episódios de
terror noturno do irmão começarem a intervir, devido aos gritos, ela é levada
para dormir na cama da mãe e do padrasto, até sua mãe sair da cama no meio da
noite pela primeira vez e a garota sofrer o primeiro abuso, na mente de uma
garota pequena, na fase dos sete anos, isso é apenas carinho, um abraço
apertado e mais nada, mas o modo como a autora descreve podemos ver a gravidade
da situação, a maneira como o padrasto se aproveita da inocência da criança é
desesperadora, o modo como ela descreve se sentir bem com o coração dele
batendo rápido faz o nosso peito doer. O próximo abuso acontece alguns meses
depois, novamente o homem se aproveitando da ingenuidade da criança mas dessa vez
de maneira muito mais invasiva. Maya foi invadida da pior maneira que uma
mulher pode ser e nunca mais se recuperou. Apesar das ameaças de morte ela
sentiu que deveria contar para mãe e assim o fez, o homem foi julgado e não
cumpriu pena, mas logo foi morto pelos familiares de Maya, algo que nunca foi
falado a respeito.
Devido à
situação e ao trauma, a garota sentia que era impura, que cedeu ao mundo dos
pecados e que se conversasse com outra pessoa, iria corrompe-la também, foi assim
que Maya parou de verbalizar, durante 3 anos a garota não conversou com mais
ninguém além de seu irmão, se puniu de maneira branda por algo que jamais teve
culpa, ela aprendeu a contemplar o silêncio, absorver o pedacinho de cada
ambiente e de não se fazer notada.
Nessa
obra em especial, que faz parte da sua série de literaturas, Maya traça o
panorama da sua infância até a gravidez, sem qualquer medo de pré julgamento,
uma infância difícil não deve ser normalizada ou diminuída por fazer parte de
um viés literário, muito pelo contrário, a autora nos mostra o passo a passo do
seu crescimento e de suas descobertas mais dolorosas, a infância enquanto
negra, o abuso, o silêncio e por fim a libertação por meio da literatura, é
assim que a autora volta a verbalizar. Uma obra sincera e dolorosa, repleta de
assuntos que nos saltam os olhos e doem o peito, mas imprescindível para você
que precisa entender sobre infância, negritude e o que vem depois disso.
Título: Eu sei porque o pássaro canta na gaiola
Autora: Maya Angelou
Editora: Astral Cultural
Nº de páginas: 336
Sinopse: "RACISMO. ABUSO. LIBERTAÇÃO. A vida de Marguerite Ann Johnson foi marcada por essas três palavras. A garota negra, criada no sul por sua avó paterna, carregou consigo um enorme fardo que foi aliviado apenas pela literatura e por tudo aquilo que ela pôde lhe trazer: conforto através das palavras. Dessa forma, Maya, como era carinhosamente chamada, escreve para exibir sua voz e libertar-se das grades que foram colocadas em sua vida. As lembranças dolorosas e as descobertas de Angelou estão contidas e eternizadas nas páginas desta obra densa e necessária, dando voz aos jovens que um dia foram, assim como ela, fadados a uma vida dura e cheia de preconceitos. Com uma escrita poética e poderosa, a obra toca, emociona e transforma profundamente o espírito e o pensamento de quem a lê."